A luz do Sol que invadia a cozinha pela janela, me despertou. “Eu dormi?”. Sim, eu adormecera em meio ao desespero, e enquanto eu coçada os olhos, eu desejava que a cena da noite anterior tivesse sido apenas um pesadelo. Eu desejava que eu tivesse ficado bêbado naquela festa e tivesse dormido ali, no chão da cozinha. Quando eu criei coragem para abrir os olhos, vi que meus desejos não se tornaram realidade. Meu pai jazia ali, mais frio que a noite anterior. O sangue já coagulado manchava o chão de um marrom-avermelhado, e as fotos brilhavam respondendo à luz do Sol.
Saí de lá. Eu não sabia o que eu iria fazer, mas queria sair dali. Liguei para a Emergência e expliquei a situação. A frieza da minha voz pareceu assustar a atendente. “Dane-se”. Eu não me importava mais com nada.
Sentei na calçada de casa para esperar alguém ir buscar meu pai. Não olhei no relógio, mas pelo Sol devia ser mais ou menos 8:00h. O tempo passava devagar. Tentei mais uma vez, em vão, acordar de algum pesadelo que transformara a melhor noite da minha vida, em algo terrivelmente indescritível.
Cada minuto parecia uma hora. Fiquei ali refletindo, pensando no que eu iria fazer dali para frente. Sem pai, nem mãe, eu teria sorte se me deixassem em paz e não me mandassem para o conselho tutelar. Minha avó falecera um ano antes, contribuindo para a maldita depressão do meu pai, então eu não tinha mais ninguém.
A ambulância chegou, e uns caras vestidos de branco entraram em casa. Eles também se assustaram com a minha frieza e a aparência pálida, e eu estava pouco me lixando. Eles saíram com uma maca carregando meu pai coberto por um pano branco. Um dos caras de branco veio falar comigo:
– Garoto, qual é o seu nome?
– Não importa – Respondi friamente, sem levantar a cabeça.
– Eu sei que é difícil. Eu gostaria de fazer algumas perguntas, só para ajudar no laudo. Tudo bem por você?
– Vá em frente...
– A que horas você encontrou o corpo?
– Não sei, eu esqueci de pensar “Puxa! Deixa-me ver que horas são pra falar pro cara amanhã! Depois eu me preocupo com meu pai suicida!”. – Eu retruquei, e ele pareceu desconfortável. Ótimo, essa era a intenção.
– V-Você tem algum outro responsável? – Quando ele perguntou, eu levantei a cabeça e o encarei por alguns segundos. Aquele cara pareceu incomodado, talvez até com medo, não sei.
– Você não acha que se eu tivesse, ele não estaria aqui? – Retruquei. Ele gaguejou algumas desculpas.
– Bom, – Ele começou, desistindo da idéia de continuar com as perguntas – O corpo vai estar neste endereço, alguém vai precisar reconhecê-lo. – Eu peguei o papel e entrei em casa sem dizer nada.
Ódio? Não. Confusão? Talvez. Fui até a cozinha e peguei as fotos e o envelope no qual elas vieram. Meu primeiro sentimento foi desejo de vingança. Primeiro minha mãe some e transforma minha vida num inferno, e depois, como se já não tivesse feito o bastante, manda aquelas fotos para o meu pai. Tudo o que eu queria era pegar o endereço, e pendurar a cabeça daquela vadia em um poste, pra todos verem.
Estranhei o fato de que o endereço do remetente era da própria cidade, e logo perdi as esperanças. “Isso é óbvio. Ela não ia nos dar seu endereço atual.”. Procurei na lista telefônica e o endereço era de uma senhora de idade muito simpática que desligou na minha cara logo depois de me xingar por tê-la acordado.
O relógio marcava 9:30h, não estava passando nada de bom na televisão e eu não para de pensar no meu pai. “Por que?!”.
Cinco minutos se passaram e o telefone tocou. E continuou tocando. Não atendi e ele parou de tocar, mas seja lá quem estivesse ligando, tentou novamente. O toque me fez perder a paciência a atender:
– Alô?
Silêncio.
Eu podia ouvir vozes abafadas ao fundo e quando pareceu ser uma pessoa gritando como se estivesse começando uma bronca, a ligação caiu.
Sem entender nem ligar pro que acabara de acontecer, coloquei o telefone no gancho e deitei no sofá. O barulho da televisão não atrapalhava e eu adormeci pensando no que iria fazer dali pra frente. Sonhei com corpos mortos de pulsos cortados sendo jogados num lado de sangue que fedia à podridão. Os corpos, ao tocarem o sangue, ganhavam vida e gritavam enquanto a carne podre ia sendo corroída pelo líquido vermelho-vibrante.
Acordei assustado quando um dos corpos me puxou pelo peito para dentro do lado, e quando abri os olhos, vi que era Clara quem estava me acordando.
– Desculpe, – Ela disse com uma expressão de preocupação – mas você não atendeu ao telefone, então eu pensei que tivesse acontecido alguma coisa.
– Imagine... – Eu respondi enquanto sentava no sofá e coçava os olhos. – Que horas são?
– Quase meio-dia. Você dormiu a noite toda aí? A propósito, seu pai esqueceu a porta da frente aberta de novo – Ela disse sorrindo, perdendo o ar de preocupada e abrindo as janelas.
– Não, eu não dormi aqui a noite toda. – “Foi num lugar pior... muito pior...”, pensei. – E não foi ele que não trancou a porta. – Eu disse enquanto ela abria a última janela.
– Foi você então? Ahahahaha! – Não respondi nada e ela ficou um pouco sem graça.
– Você não foi na cozinha, foi? – Eu sabia que pelo humor dela, a resposta seria negativa. O sangue ainda estava lá.
– Não, por quê? – Ela perguntou surpresa.
– Vamos sair daqui. Eu te explico daqui a pouco.
Sem pegar nada, saímos e começamos a caminhar sem rumo. Contei à ela o que acontecera na noite anterior e ela tentou me consolar.
– Que horrível! – Ela disse.
– Pois é...
– E agora, o que você vai fazer? Digo, você vai morar sozinho?
– Não sei, não sei... Antes de tudo eu tenho que ir num lugar para identificar o corpo. Que estúpido, eles sabem quem é e mesmo assim alguém precisa identificar.
– Eu posso falar com a minha mãe para você passar um tempo lá em casa, se você quiser. A gente tem um quarto sobrando.
– Obrigado, Clara. – Eu respondi quase imediatamente. Normalmente eu não aceitava caridade, mas eu estava desesperado e não sabia o que fazer. – Você acha que a sua mãe vai deixar?
– Se não deixar, eu prendo a respiração até ela concordar com isso, ahahaha! – Ela olhou para mim com um olhar de quem quer proteger uma pessoa querida, e eu senti que perto dela nada de ruim poderia acontecer. Ela me deu um beijo suave e eu correspondi. Sem abrir os olhos, eu continuei falando enquanto a abraçava.
– Obrigado, Clara. Você é a única com quem eu posso contar agora.
– Imagine. Você sabe que eu faço o que for preciso pra te ver bem. – Nós começamos a caminhar novamente, agora com ela abraçada no meu braço esquerdo, exatamente como na noite anterior. – Mas... E o Júlio? Você ainda pode contar com ele também, não pode?
– O Júlio não está na cidade, então não conta muito.
– Como assim não está na cidade? – Ela perguntou surpresa. – Ele voltou a morar aqui faz dois meses!
– O que?! – E por que ele não me disse nada?!
– Não sei. Ele tinha me falado que já havia te procurado e que você sabia que ele estava aqui. Por isso que eu não comentei nada. Ele disse até que vocês já tinham saído no outro fim de semana!
– Bom – Eu disse um pouco atordoado com a notícia – Isso não importa muito agora.
“Por que ele não me procurou? Por que ele mentiria para Clara? Aparentemente ele não queria que eu soubesse que ele estava por perto, mas... por quê?”. Mais perguntas sem respostas, mais dores de cabeça. Tentei não pensar muito nesse assunto.
Clara e eu continuamos caminhando por um tempo até que fomos para a casa dela, e eu fiquei sentado na calça enquanto ela falava com a mãe sobre eu ficar lá por uns dias. Logo ela voltou com a resposta positiva, e pediu para eu ficar para o almoço. Eu aceitei e meu estômago agradeceu.
Mais tarde eu fui até o endereço onde estava o corpo do meu pai. Clara conseguiu me distrair e fazer com que eu não pensasse muito no que acontecera, mas quando eu passei pela porta de vidro do IML, eu já lembrava e já voltara a sentir o mesmo desespero de antes. Meu coração disparou de nervoso quando a atendente apontou para um corredor com vários bancos de madeira e disse para eu esperar lá, que em instantes me chamariam.
Eu mal havia me sentado e um cara chamou pelo nome. Eu entrei na porta que ele abrira e fui andando pelo corredor estreito até chegar numa salinha que levava até o necrotério.
– Coloquei isso – Disse o rapaz de uns 30 anos me estendendo uma daquelas máscaras cirúrgicas desconfortáveis. – O cheiro pode estar forte.
Eu obedeci e o segui até o necrotério. Ele olhou numa mesa, pegou uma folha, analisou-a por um instante e então me entregou. O título do documento mostrava que aquela era a comanda para o atestado de óbito.
– Isto fica com você. – Ele disse se referindo à comanda – Entregue para a moça lá fora e ela te dirá o que fazer.
“Quem me dera ela dissesse REALMENTE o que fazer.”
Eu assenti e então fomos até o outro lado do necrotério, onde ficavam os corpos. A cada passo que eu dava, meu coração batia mais forte. Eu, que sempre achei que era um cara que conseguia ter autocontrole, me decepcionei comigo mesmo. A cada passo eu percebia como eu estava sendo ridículo perdendo o controle das minhas pernas, somente esperando o momento em que elas me trairiam e perderiam toda a força. O rapaz puxou uma gaveta de metal e ela correu revelando um lençol até parar sozinha. Debaixo do lençol estava meu pai. Eu sabia disso, mesmo com o corpo coberto.
– Olha, – Ele começou – eu faço isso todo dia e vejo essa mesma expressão no rosto de muita gente e sei como é difícil fazer esse tipo de coisa, então tenha força, OK?
Ele levantou o lençol na parte da cabeça e o rosto sem vida e ainda rosado do meu pai me encarou de olhos fechados.
– Então? É ele. É para isso que eu tive que vir? – Eu disse, tentando esconder a minha tensão e desespero.
– Pois é, eu também acho ridículo eles fazerem isso com alguém que acabou de perder uma pessoa que ama, ainda mais de uma forma tão trágica. – Ele cobriu o corpo e fechou a gaveta.
Eu o acompanhei até a sua mesa, ele preencheu alguns papéis e pendurou uma prancheta no puxador da gaveta. Enquanto aquele cara patético dizia coisas sem sentido sobre a vida e a morte, a tensão causada por aquele trabalho, eu o observava preenchendo uma ficha com dados pessoais do meu pai.
“Profissão? Eu sei lá...”, eu pensei quando ele me perguntou. Quando ele chegou ao final da ficha, ele disse algo que chamou minha atenção:
– ... esse pai de um amigo meu também tinha se matado com cianeto. Foi bem triste, sabe? Ele...
– Espera! O que você disse?
– O pai desse meu amigo. Há um tempo atrás ele também se matou com um cianeto. Eu não sei por que razão tem gente que faz isso. Quero dizer, com cianeto deve doer pacas, principalmente se for ingerido.
– “Também”? Como assim?!
– O seu pai, garoto. A causa mortis dele foi parada cardíaca devido a envenenamento por cianeto de potássio. Pensei que você soubesse.
– Eu achei que ele morreu por causa dos cortes nos pulsos!
– Olha garoto, eu sou novo, mas eu sei diagnosticar uma causa mortis e seu pai não morreu de hemorragia.
– Mas por que ele tem cortes no pulso então?
– Eu não sou nenhum perito nisso, mas minha teoria é a seguinte: segundo o exame de sangue, seu pai estava bêbado, muito bêbado. Ele deve ter levado alguns tombos, pegou uma faca e cortou os pulsos. Mas seu pai cometeu um erro comum entre os suicidas: ele cortou os pulsos na horizontal. Uma pessoa sente muito mais dor e demora muito mais tempo para morrer quando ela corta os pulsos na horizontal. Então seu pai percebeu isso e tomou o cianeto. Isso explica o tom rosado no rosto e as manchas azuladas no peito e perto dos cortes.
Eu ouvi toda a explicação, perplexo. “Envenenamento por Cianeto de Potássio?! Impossível!”
– Você tem certeza de que foi isso mesmo? – Eu perguntei ainda um pouco desnorteado.
– Absoluta. Os sintomas são bem claros e inconfundíveis.
– Então se isso realmente tiver acontecido, quando tempo ele teve antes de apagar?
– Poucos segundos.
– Então ele não teria tempo de se livrar do frasco?
– Bom... Acho que não, mas por quê? – Ele perguntou surpreso com a minha curiosidade. A essa altura, ele já havia terminado de preencher a ficha, e parecia estar ficando incomodado com o rumo da conversa.
– Por nada.
– De qualquer forma, seu pai deveria ser importante. Eu gostaria de descobrir como ele conseguiu comprar o cianeto.
– Como assim?
– Cianeto de Potássio, assim como a maioria dos cianetos, é uma substância extremamente controlada e cara. Não é qualquer um que consegue comprar.
– Entendi. – Eu disse sem entender nada.
Eu fiquei em silêncio e ele viu a oportunidade de me tirar de lá.
– Entregue a comanda para a moça lá fora e ela te dirá o que fazer. – Ele repetiu a instrução. – Você pode ir agora. Meus pêsames.
Eu saí de lá sem dizer nada, ainda tentando entender a situação, que ficara mais confusa que antes. Dirigi-me até o balcão de atendimento e entreguei a comanda para a mulher.
– Meus pêsames. – Ela disse.
– Todos falam isso aqui, é? – Eu retruquei. Ela pareceu não se importar muito, talvez já estivesse acostumada com esse tipo de comportamento.
– Preciso de um telefone para entrar em contato quando o atestado sair. Não deve demorar muito.
Passei o telefone da casa da Clara, esperando que ela não se importasse.
Fui embora. Eram quase 18:00h e eu fui para a minha casa. Eu queria ver se a teoria daquele cara estava certa. Eu tinha que achar o frasco do cianeto, para meu próprio descanso. Estava sendo difícil ter um pai suicida, mas seria muito pior ter um pai assassinado. Meu pai fizera três anos e meio de medicina quando era jovem, então ele teria noção o suficiente para saber tudo aquilo sobre cortes horizontais nos pulsos.
Virei a esquina da rua de casa e meu patético coração disparou mais uma vez no dia. Abri a porta de casa e o cheiro forte de sangue podre saiu de lá de dentro invadindo meus pulmões e me forçando a tossir, para diminuir a sensação de nojo. Logo eu me acostumei com o cheiro e passei a ignorá-lo.
Agora tudo estava apontando para a teoria do rapaz do IML: A mesa de centro que ficava entre o sofá e a televisão estava torta e o tapete estava bagunçado, caracterizando um tombo, talvez; o porta-retratos que ficava na parte de cima da estante da TV estava quebrado no chão, talvez outro tombo, ou então o mesmo tombo de antes; as gavetas da cômoda do meu pai estavam todas jogadas no chão, vazias, com o conteúdo espalhado pelo quarto, talvez ele o fizesse procurando pelo cianeto.
Tudo estava direcionado para aquela teoria estar certa, exceto um fato: o frasco do cianeto sumira. Simplesmente sumira. Eu revirei a casa toda e não achei aquele maldito frasco, nem jogado em algum canto, nem em nenhum lixo.
Esperando que a MINHA teoria estivesse errada, eu fui para a casa da Clara. A escuridão da noite já tomara conta do lugar. Naquela noite, o escuro causava mais medo nas pessoas que normalmente causaria. Elas estavam se escondendo dentro de suas casas medíocres, tentando se safar do inevitável. Elas se escondiam dentro de sua própria alma tentando não ficar tentados a enfrentar o medo, a angústia, e ao invés disso, aceitavam a derrota quietos, sentados num canto frio e escuro de seus respectivos quartos, deitados sem suas camas duras, torcendo para o Sol não nascer no dia seguinte. Eram e ainda são vampiros que detestam a luz da vida e sugam toda a informação que sai da televisão e aliena os fracos. Naquela noite, eles eram apenas os primeiros de uma linhagem de vampiros que viriam nas próximas gerações. Eram os que começaram a transformar a sociedade no que ela é, e seus filhos, netos e bastardos que continuam transformando-a, com um único objetivo: deixar a sociedade cada vez mais podre, até chegar ao ponto em que pessoas matariam umas às outras por coisas fúteis, e roubariam
Cheguei à casa da Clara e ela disse que não havia problemas em ter dado o número dela no IML, e sem mais nada de importante para fazer, fui dormir mais ou menos às 21:00h.
Tive o mesmo pesadelo de antes: corpos caindo num lado de sangue, criando vida, gritando e tendo a carne podre do corpo corroída. Quando um corpo cravou a faca que matou meu pai no meu peito, me fazendo cair no lago de sangue, eu acordei assustado e tive um momento de clareza. “É ÓBVIO!”. Tudo de repente fazia sentido.
No dia seguinte eu contei à Clara o que eu encontrei em casa na noite anterior, mas com um pequeno detalhe a mais que havia passado despercebido por mim: a faca.
– A faca, Clara. Aquela faca era diferente de qualquer outra que tínhamos em casa. Aquela faca não era nossa!
– Mas o seu pai poderia ter pego emprestado de alguém e não te disse.
– Clara... Quem pede uma faca emprestada? Além do mais, meu pai não pedia coisas emprestadas. Para ele era o cúmulo da humilhação ter que pedir algo.
Contra a minha vontade, eu respirei fundo e disse:
– Não Clara, meu pai não se matou. Meu pai... ele foi assassinado.
Saí de lá. Eu não sabia o que eu iria fazer, mas queria sair dali. Liguei para a Emergência e expliquei a situação. A frieza da minha voz pareceu assustar a atendente. “Dane-se”. Eu não me importava mais com nada.
Sentei na calçada de casa para esperar alguém ir buscar meu pai. Não olhei no relógio, mas pelo Sol devia ser mais ou menos 8:00h. O tempo passava devagar. Tentei mais uma vez, em vão, acordar de algum pesadelo que transformara a melhor noite da minha vida, em algo terrivelmente indescritível.
Cada minuto parecia uma hora. Fiquei ali refletindo, pensando no que eu iria fazer dali para frente. Sem pai, nem mãe, eu teria sorte se me deixassem em paz e não me mandassem para o conselho tutelar. Minha avó falecera um ano antes, contribuindo para a maldita depressão do meu pai, então eu não tinha mais ninguém.
A ambulância chegou, e uns caras vestidos de branco entraram em casa. Eles também se assustaram com a minha frieza e a aparência pálida, e eu estava pouco me lixando. Eles saíram com uma maca carregando meu pai coberto por um pano branco. Um dos caras de branco veio falar comigo:
– Garoto, qual é o seu nome?
– Não importa – Respondi friamente, sem levantar a cabeça.
– Eu sei que é difícil. Eu gostaria de fazer algumas perguntas, só para ajudar no laudo. Tudo bem por você?
– Vá em frente...
– A que horas você encontrou o corpo?
– Não sei, eu esqueci de pensar “Puxa! Deixa-me ver que horas são pra falar pro cara amanhã! Depois eu me preocupo com meu pai suicida!”. – Eu retruquei, e ele pareceu desconfortável. Ótimo, essa era a intenção.
– V-Você tem algum outro responsável? – Quando ele perguntou, eu levantei a cabeça e o encarei por alguns segundos. Aquele cara pareceu incomodado, talvez até com medo, não sei.
– Você não acha que se eu tivesse, ele não estaria aqui? – Retruquei. Ele gaguejou algumas desculpas.
– Bom, – Ele começou, desistindo da idéia de continuar com as perguntas – O corpo vai estar neste endereço, alguém vai precisar reconhecê-lo. – Eu peguei o papel e entrei em casa sem dizer nada.
Ódio? Não. Confusão? Talvez. Fui até a cozinha e peguei as fotos e o envelope no qual elas vieram. Meu primeiro sentimento foi desejo de vingança. Primeiro minha mãe some e transforma minha vida num inferno, e depois, como se já não tivesse feito o bastante, manda aquelas fotos para o meu pai. Tudo o que eu queria era pegar o endereço, e pendurar a cabeça daquela vadia em um poste, pra todos verem.
Estranhei o fato de que o endereço do remetente era da própria cidade, e logo perdi as esperanças. “Isso é óbvio. Ela não ia nos dar seu endereço atual.”. Procurei na lista telefônica e o endereço era de uma senhora de idade muito simpática que desligou na minha cara logo depois de me xingar por tê-la acordado.
O relógio marcava 9:30h, não estava passando nada de bom na televisão e eu não para de pensar no meu pai. “Por que?!”.
Cinco minutos se passaram e o telefone tocou. E continuou tocando. Não atendi e ele parou de tocar, mas seja lá quem estivesse ligando, tentou novamente. O toque me fez perder a paciência a atender:
– Alô?
Silêncio.
Eu podia ouvir vozes abafadas ao fundo e quando pareceu ser uma pessoa gritando como se estivesse começando uma bronca, a ligação caiu.
Sem entender nem ligar pro que acabara de acontecer, coloquei o telefone no gancho e deitei no sofá. O barulho da televisão não atrapalhava e eu adormeci pensando no que iria fazer dali pra frente. Sonhei com corpos mortos de pulsos cortados sendo jogados num lado de sangue que fedia à podridão. Os corpos, ao tocarem o sangue, ganhavam vida e gritavam enquanto a carne podre ia sendo corroída pelo líquido vermelho-vibrante.
Acordei assustado quando um dos corpos me puxou pelo peito para dentro do lado, e quando abri os olhos, vi que era Clara quem estava me acordando.
– Desculpe, – Ela disse com uma expressão de preocupação – mas você não atendeu ao telefone, então eu pensei que tivesse acontecido alguma coisa.
– Imagine... – Eu respondi enquanto sentava no sofá e coçava os olhos. – Que horas são?
– Quase meio-dia. Você dormiu a noite toda aí? A propósito, seu pai esqueceu a porta da frente aberta de novo – Ela disse sorrindo, perdendo o ar de preocupada e abrindo as janelas.
– Não, eu não dormi aqui a noite toda. – “Foi num lugar pior... muito pior...”, pensei. – E não foi ele que não trancou a porta. – Eu disse enquanto ela abria a última janela.
– Foi você então? Ahahahaha! – Não respondi nada e ela ficou um pouco sem graça.
– Você não foi na cozinha, foi? – Eu sabia que pelo humor dela, a resposta seria negativa. O sangue ainda estava lá.
– Não, por quê? – Ela perguntou surpresa.
– Vamos sair daqui. Eu te explico daqui a pouco.
Sem pegar nada, saímos e começamos a caminhar sem rumo. Contei à ela o que acontecera na noite anterior e ela tentou me consolar.
– Que horrível! – Ela disse.
– Pois é...
– E agora, o que você vai fazer? Digo, você vai morar sozinho?
– Não sei, não sei... Antes de tudo eu tenho que ir num lugar para identificar o corpo. Que estúpido, eles sabem quem é e mesmo assim alguém precisa identificar.
– Eu posso falar com a minha mãe para você passar um tempo lá em casa, se você quiser. A gente tem um quarto sobrando.
– Obrigado, Clara. – Eu respondi quase imediatamente. Normalmente eu não aceitava caridade, mas eu estava desesperado e não sabia o que fazer. – Você acha que a sua mãe vai deixar?
– Se não deixar, eu prendo a respiração até ela concordar com isso, ahahaha! – Ela olhou para mim com um olhar de quem quer proteger uma pessoa querida, e eu senti que perto dela nada de ruim poderia acontecer. Ela me deu um beijo suave e eu correspondi. Sem abrir os olhos, eu continuei falando enquanto a abraçava.
– Obrigado, Clara. Você é a única com quem eu posso contar agora.
– Imagine. Você sabe que eu faço o que for preciso pra te ver bem. – Nós começamos a caminhar novamente, agora com ela abraçada no meu braço esquerdo, exatamente como na noite anterior. – Mas... E o Júlio? Você ainda pode contar com ele também, não pode?
– O Júlio não está na cidade, então não conta muito.
– Como assim não está na cidade? – Ela perguntou surpresa. – Ele voltou a morar aqui faz dois meses!
– O que?! – E por que ele não me disse nada?!
– Não sei. Ele tinha me falado que já havia te procurado e que você sabia que ele estava aqui. Por isso que eu não comentei nada. Ele disse até que vocês já tinham saído no outro fim de semana!
– Bom – Eu disse um pouco atordoado com a notícia – Isso não importa muito agora.
“Por que ele não me procurou? Por que ele mentiria para Clara? Aparentemente ele não queria que eu soubesse que ele estava por perto, mas... por quê?”. Mais perguntas sem respostas, mais dores de cabeça. Tentei não pensar muito nesse assunto.
Clara e eu continuamos caminhando por um tempo até que fomos para a casa dela, e eu fiquei sentado na calça enquanto ela falava com a mãe sobre eu ficar lá por uns dias. Logo ela voltou com a resposta positiva, e pediu para eu ficar para o almoço. Eu aceitei e meu estômago agradeceu.
Mais tarde eu fui até o endereço onde estava o corpo do meu pai. Clara conseguiu me distrair e fazer com que eu não pensasse muito no que acontecera, mas quando eu passei pela porta de vidro do IML, eu já lembrava e já voltara a sentir o mesmo desespero de antes. Meu coração disparou de nervoso quando a atendente apontou para um corredor com vários bancos de madeira e disse para eu esperar lá, que em instantes me chamariam.
Eu mal havia me sentado e um cara chamou pelo nome. Eu entrei na porta que ele abrira e fui andando pelo corredor estreito até chegar numa salinha que levava até o necrotério.
– Coloquei isso – Disse o rapaz de uns 30 anos me estendendo uma daquelas máscaras cirúrgicas desconfortáveis. – O cheiro pode estar forte.
Eu obedeci e o segui até o necrotério. Ele olhou numa mesa, pegou uma folha, analisou-a por um instante e então me entregou. O título do documento mostrava que aquela era a comanda para o atestado de óbito.
– Isto fica com você. – Ele disse se referindo à comanda – Entregue para a moça lá fora e ela te dirá o que fazer.
“Quem me dera ela dissesse REALMENTE o que fazer.”
Eu assenti e então fomos até o outro lado do necrotério, onde ficavam os corpos. A cada passo que eu dava, meu coração batia mais forte. Eu, que sempre achei que era um cara que conseguia ter autocontrole, me decepcionei comigo mesmo. A cada passo eu percebia como eu estava sendo ridículo perdendo o controle das minhas pernas, somente esperando o momento em que elas me trairiam e perderiam toda a força. O rapaz puxou uma gaveta de metal e ela correu revelando um lençol até parar sozinha. Debaixo do lençol estava meu pai. Eu sabia disso, mesmo com o corpo coberto.
– Olha, – Ele começou – eu faço isso todo dia e vejo essa mesma expressão no rosto de muita gente e sei como é difícil fazer esse tipo de coisa, então tenha força, OK?
Ele levantou o lençol na parte da cabeça e o rosto sem vida e ainda rosado do meu pai me encarou de olhos fechados.
– Então? É ele. É para isso que eu tive que vir? – Eu disse, tentando esconder a minha tensão e desespero.
– Pois é, eu também acho ridículo eles fazerem isso com alguém que acabou de perder uma pessoa que ama, ainda mais de uma forma tão trágica. – Ele cobriu o corpo e fechou a gaveta.
Eu o acompanhei até a sua mesa, ele preencheu alguns papéis e pendurou uma prancheta no puxador da gaveta. Enquanto aquele cara patético dizia coisas sem sentido sobre a vida e a morte, a tensão causada por aquele trabalho, eu o observava preenchendo uma ficha com dados pessoais do meu pai.
“Profissão? Eu sei lá...”, eu pensei quando ele me perguntou. Quando ele chegou ao final da ficha, ele disse algo que chamou minha atenção:
– ... esse pai de um amigo meu também tinha se matado com cianeto. Foi bem triste, sabe? Ele...
– Espera! O que você disse?
– O pai desse meu amigo. Há um tempo atrás ele também se matou com um cianeto. Eu não sei por que razão tem gente que faz isso. Quero dizer, com cianeto deve doer pacas, principalmente se for ingerido.
– “Também”? Como assim?!
– O seu pai, garoto. A causa mortis dele foi parada cardíaca devido a envenenamento por cianeto de potássio. Pensei que você soubesse.
– Eu achei que ele morreu por causa dos cortes nos pulsos!
– Olha garoto, eu sou novo, mas eu sei diagnosticar uma causa mortis e seu pai não morreu de hemorragia.
– Mas por que ele tem cortes no pulso então?
– Eu não sou nenhum perito nisso, mas minha teoria é a seguinte: segundo o exame de sangue, seu pai estava bêbado, muito bêbado. Ele deve ter levado alguns tombos, pegou uma faca e cortou os pulsos. Mas seu pai cometeu um erro comum entre os suicidas: ele cortou os pulsos na horizontal. Uma pessoa sente muito mais dor e demora muito mais tempo para morrer quando ela corta os pulsos na horizontal. Então seu pai percebeu isso e tomou o cianeto. Isso explica o tom rosado no rosto e as manchas azuladas no peito e perto dos cortes.
Eu ouvi toda a explicação, perplexo. “Envenenamento por Cianeto de Potássio?! Impossível!”
– Você tem certeza de que foi isso mesmo? – Eu perguntei ainda um pouco desnorteado.
– Absoluta. Os sintomas são bem claros e inconfundíveis.
– Então se isso realmente tiver acontecido, quando tempo ele teve antes de apagar?
– Poucos segundos.
– Então ele não teria tempo de se livrar do frasco?
– Bom... Acho que não, mas por quê? – Ele perguntou surpreso com a minha curiosidade. A essa altura, ele já havia terminado de preencher a ficha, e parecia estar ficando incomodado com o rumo da conversa.
– Por nada.
– De qualquer forma, seu pai deveria ser importante. Eu gostaria de descobrir como ele conseguiu comprar o cianeto.
– Como assim?
– Cianeto de Potássio, assim como a maioria dos cianetos, é uma substância extremamente controlada e cara. Não é qualquer um que consegue comprar.
– Entendi. – Eu disse sem entender nada.
Eu fiquei em silêncio e ele viu a oportunidade de me tirar de lá.
– Entregue a comanda para a moça lá fora e ela te dirá o que fazer. – Ele repetiu a instrução. – Você pode ir agora. Meus pêsames.
Eu saí de lá sem dizer nada, ainda tentando entender a situação, que ficara mais confusa que antes. Dirigi-me até o balcão de atendimento e entreguei a comanda para a mulher.
– Meus pêsames. – Ela disse.
– Todos falam isso aqui, é? – Eu retruquei. Ela pareceu não se importar muito, talvez já estivesse acostumada com esse tipo de comportamento.
– Preciso de um telefone para entrar em contato quando o atestado sair. Não deve demorar muito.
Passei o telefone da casa da Clara, esperando que ela não se importasse.
Fui embora. Eram quase 18:00h e eu fui para a minha casa. Eu queria ver se a teoria daquele cara estava certa. Eu tinha que achar o frasco do cianeto, para meu próprio descanso. Estava sendo difícil ter um pai suicida, mas seria muito pior ter um pai assassinado. Meu pai fizera três anos e meio de medicina quando era jovem, então ele teria noção o suficiente para saber tudo aquilo sobre cortes horizontais nos pulsos.
Virei a esquina da rua de casa e meu patético coração disparou mais uma vez no dia. Abri a porta de casa e o cheiro forte de sangue podre saiu de lá de dentro invadindo meus pulmões e me forçando a tossir, para diminuir a sensação de nojo. Logo eu me acostumei com o cheiro e passei a ignorá-lo.
Agora tudo estava apontando para a teoria do rapaz do IML: A mesa de centro que ficava entre o sofá e a televisão estava torta e o tapete estava bagunçado, caracterizando um tombo, talvez; o porta-retratos que ficava na parte de cima da estante da TV estava quebrado no chão, talvez outro tombo, ou então o mesmo tombo de antes; as gavetas da cômoda do meu pai estavam todas jogadas no chão, vazias, com o conteúdo espalhado pelo quarto, talvez ele o fizesse procurando pelo cianeto.
Tudo estava direcionado para aquela teoria estar certa, exceto um fato: o frasco do cianeto sumira. Simplesmente sumira. Eu revirei a casa toda e não achei aquele maldito frasco, nem jogado em algum canto, nem em nenhum lixo.
Esperando que a MINHA teoria estivesse errada, eu fui para a casa da Clara. A escuridão da noite já tomara conta do lugar. Naquela noite, o escuro causava mais medo nas pessoas que normalmente causaria. Elas estavam se escondendo dentro de suas casas medíocres, tentando se safar do inevitável. Elas se escondiam dentro de sua própria alma tentando não ficar tentados a enfrentar o medo, a angústia, e ao invés disso, aceitavam a derrota quietos, sentados num canto frio e escuro de seus respectivos quartos, deitados sem suas camas duras, torcendo para o Sol não nascer no dia seguinte. Eram e ainda são vampiros que detestam a luz da vida e sugam toda a informação que sai da televisão e aliena os fracos. Naquela noite, eles eram apenas os primeiros de uma linhagem de vampiros que viriam nas próximas gerações. Eram os que começaram a transformar a sociedade no que ela é, e seus filhos, netos e bastardos que continuam transformando-a, com um único objetivo: deixar a sociedade cada vez mais podre, até chegar ao ponto em que pessoas matariam umas às outras por coisas fúteis, e roubariam
Cheguei à casa da Clara e ela disse que não havia problemas em ter dado o número dela no IML, e sem mais nada de importante para fazer, fui dormir mais ou menos às 21:00h.
Tive o mesmo pesadelo de antes: corpos caindo num lado de sangue, criando vida, gritando e tendo a carne podre do corpo corroída. Quando um corpo cravou a faca que matou meu pai no meu peito, me fazendo cair no lago de sangue, eu acordei assustado e tive um momento de clareza. “É ÓBVIO!”. Tudo de repente fazia sentido.
No dia seguinte eu contei à Clara o que eu encontrei em casa na noite anterior, mas com um pequeno detalhe a mais que havia passado despercebido por mim: a faca.
– A faca, Clara. Aquela faca era diferente de qualquer outra que tínhamos em casa. Aquela faca não era nossa!
– Mas o seu pai poderia ter pego emprestado de alguém e não te disse.
– Clara... Quem pede uma faca emprestada? Além do mais, meu pai não pedia coisas emprestadas. Para ele era o cúmulo da humilhação ter que pedir algo.
Contra a minha vontade, eu respirei fundo e disse:
– Não Clara, meu pai não se matou. Meu pai... ele foi assassinado.
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Continua...
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