Onde os sonhos são imperfeitos e sonhamos com a imperfeição...

20 de março de 2010

O início da Sombra - Parte 2

        A noite do dia 17 de novembro daquele ano estava linda. Cinco meses se passaram depois daquele dia na praça, eu completara 17 anos na mesma semana, e eu finalmente estava começando a esquecer da minha mãe, apesar do meu pai continuar o mesmo.
        O relógio mostrava 21:15, meu pai bêbado dormindo no sofá da nossa sala imunda, a TV sintonizada num canal rural da antena parabólica, e eu deitado na grama do quintal apreciando o céu estrelado. De repente o telefone tocou e eu o ignorei com a esperança de que meu pai acordasse e atendesse. O telefone tocou de novo. E de novo. Eu levantei e fui atendê-lo, torcendo para que fosse engano.




        – Alô? – Eu atendi. Havia muito barulho do outro lado da linha, parecia música alta e pessoas falando sem parar.
        – Alô! Ah, que bom que você está em casa! – disse a voz da Clara, reconhecendo a minha.
        – Ahahaha! E onde mais eu poderia estar? – Brinquei. – Tudo bom com você?
        – Pode ficar melhor. Preciso da sua ajuda! É urgente!
        – Como assim? O que aconteceu? – Eu me assustei... Sem motivo...
        – Lembra do Caio? Aquele carinha que eu tava a fim? – Senti um certo desconforto e não disse nada. Ela continuou. – Ele me convidou para uma festa na casa de um amigo dele, mas o idiota ficou bêbado e desmaiou agora pouco no quintal! Eu não conheço ninguém aqui! Você não quer vir me buscar? Não é longe, mas eu tenho medo de andar sozinha à noite, você sabe... – Eu estava gargalhando por dentro desde o “... mas o idiota ficou bêbado...”, porém não esbocei essa risada no telefone.
        – Onde que você está? – Perguntei. Não entendi muito bem o que eu estava sentindo na hora. Foi uma mistura de preocupação com vontade de não sei o que. De qualquer forma, eu fui buscá-la. Ela me passou o endereço, e eu pedi pra ela me esperar na porta da casa.
        Vesti uma blusa, coloquei meu tênis, peguei minha chave e fui até o endereço que ela me passou.
        O lugar realmente era perto. Cheguei em quinze minutos, e Clara estava sentada na calçada me esperando. Quando me viu ela levantou, veio andando até mim e me abraçou dizendo “Que bom que você veio!”.
        Ela estava linda. Seu cabelo negro estava solto, dançando junto com o vento. Estava usando uma maquiagem leve que a deixava mais linda que o normal. Vestia apenas uma camiseta um pouco decotada, a qual realçava o volume do seu busto, e uma saia jeans que ia até um pouco acima do joelho.
        Enquanto ela terminava o abraço, eu perguntei se ela queria ir embora.
        – Bom, se você prometer não ficar bêbado também, a gente pode aproveitar a festa um pouco. Afinal, ainda é cedo. – ela respondeu sorrindo. Eu concordei e nós entramos.
        A festa estava cheia de gente esquisita, tipos de pessoas que eu nunca vira antes. Estava tocando uma música eletrônica no volume máximo e Clara teve que chegar perto do meu ouvido para me oferecer uma bebida. Eu aceitei, sentindo seu perfume doce, e enquanto ela buscava algo para bebermos, eu me perguntava com que tipo de gente aquele tal de Caio andava.
        Clara voltou me estendendendo um copo cheio e me chamou para nos refugiarmos do barulho no quintal.
        – Que bom, já tiraram o Caio daqui. – ela disse quanto avistamos uma poça de vômito.
        – Ainda é cedo, ele tinha bebido muito?
        – Que nada, o idiota é fraco pra bebida e quis me impressionar.
       – Entendi. – Nos sentamos numas cadeiras que estavam lá e eu continuei. – Então... Clara... Você e o Caio...
        – Eu e ele o que? Estamos juntos? Não. E nem vamos estar. Sabe, hoje eu vi que ele não era o cara que eu esperava que fosse. Quero dizer, – ela deu um gole – Eu quero um cara que cuide de mim e não que me esqueça logo depois que tomar a primeira cerveja.
        Ela começou a desabafar, falar da decepção com o primeiro namorado, falar que ela nunca vai achar ninguém, e todos os outros “bla bla bla’s” que uma pessoa começa a falar quando bebe. Ela ainda não estava bêbada, mas com certeza estava ficando.
        Ficamos ali conversando por um tempo. A noite começou a ficar fria, o relógio bateu uma da manhã e Clara pediu para irmos embora. Eu a esperei na calçada, enquanto ela se despedia de algumas pessoas que até antes ela não conhecia. Quando ela saiu, um vento frio e forte a fez abraçar o próprio corpo e tremer. Sem pensar, eu tirei minha blusa e coloquei sobre seus ombros, e ela agradeceu sorrindo.
        Nós começamos a andar em direção à casa dela e o silêncio tomou conta do ambiente por um tempo. Eu não sabia como, nem porque, mas sabia que eu deveria quebrá-lo. Senti que deveria fazer alguma coisa, e senti que Clara também queria que eu fizesse algo.
        – Clara, – eu disse quebrando o silêncio – posso perguntar uma coisa?
        – Pode, claro. Não precisa nem pedir. – ela responde sorridente.
        – Não quero que você entenda mal, mas... Por que você se interessou em ser minha amiga?
        – Como assim? – ela retrucou surpresa.
        – Quero dizer, quando você veio falar comigo pela primeira vez, eu fui rude, te tratei mal, como eu faço com qualquer pessoa. Por que você insistiu?
        – Ah, não sei. Talvez, lá no fundo, eu sabia que dentro de você tinha um coração bom. – Aquelas palavras aceleraram meu “coração bom”, e foi nessa hora que eu entendi o que estava rolando.
        – Sabe, às vezes eu me pego pensando nisso. Eu não estou reclamando, muito pelo contrário, eu aprendi muito com você, e você é uma das pessoas mais importantes para mim. Você, o Júlio e meu pai são a minha única família. – eu disse essas coisas sem pensar muito bem. Eu estava mais desabafando do que tentando dizer a ela o quanto ela me era cara. Eu continuei dizendo essas coisas sem sentido por mais alguns minutos, e quanto eu finalmente parei, eu percebi que Clara abraçara meu braço esquerdo. Sua cabeça estava apoiada no meu ombro e seu rosto exibia um sorriso gracioso. Ela não disse nada. E eu também me calei. O silêncio mais uma vez tomara conta do ambiente, e não precisava e nem iria ser quebrado. Não naquela vez.
        Chegamos em frente da casa dela, ainda em silêncio. Sem motivo aparente, meu coração voltou a acelerar, então ela começou a se despedir:
        – Muito obrigada. Você foi um doce. Eu não sei o que eu teria feito se você não tivesse ido me buscar. – Ao dizer isso, uma expressão incomum tomou conta do rosto da garota. Ela disse aquilo de cabeça baixa, mexendo no seu molho de chaves.
        – Imagina. Você faria o mesmo. – Ambos sorrimos e aquele silêncio constrangedor apareceu. Tentei pensar em algo para dizer, mas não consegui.
        – Bom... – Ela quebrou a quietude – É isso. Boa noite. E obrigada mais uma vez. – Ao terminar, ela deu um beijo no meu rosto, me abraçou e as mãos dela se encontraram com as minhas. O cheiro doce do seu perfume começou a se afastar...
        – Espere! – Eu disse instintivamente, segurando uma de suas mãos. Meu coração agora estava a mil. Eu não sabia se era certo o que eu estava prestes a fazer, mas mesmo assim eu o fiz. Puxei Clara para perto de mim carinhosamente, ajeitei seus cabelos atrás da sua orelha, e ela pareceu prever e aceitar a minha próxima ação. Inclinei-me suavemente, e nossos lábios se conheceram. Parecia que eu estava num sonho cujo fim eu não queria conhecer. Clara colocou minhas mãos na sua cintura e jogou seus braços sobre o meu pescoço. Ela retribuiu o beijo com outro mais longo e demorado. O tempo passava mais devagar. Até mesmo a chuva que estava se formando pareceu desaparecer.
        De repente ela parou o beijo e, como uma assinatura, deu-me outro rápido e suave. Nós ficamos sorrindo feitos dois bobos até eu sussurrar um “Boa noite”. Suas mãos escorregaram pelo meu rosto até finalmente nossos corpos e corações se desvencilharem do desejo de continuar ali, curtindo um ao outro. Clara entrou em casa, e eu fui para a minha.
        Aquela noite do dia 17 de novembro daquele ano tinha ficado mais linda do que antes. Eu me sentia a pessoa mais feliz do mundo e finalmente eu esquecera minha mãe. Absolutamente nada importava naquela hora, exceto Clara. Eu estava feliz de verdade, depois de muito tempo. Não queria voltar para casa, não, mas era tarde e eu não tinha outro lugar para ir.
        Quando cheguei na frente de casa, eu vi que a porta da sala estava entreaberta. "Droga, meu pai deixou a porta aberta de novo". Entrei e tranquei a porta atrás de mim. A noite esfriara muito e minha blusa ficara com a Clara, então fui para o meu quarto colocar uma roupa mais quente. Na volta, desliguei a TV que ainda estava sintonizada no mesmo canal rural de antes, então fui para a cozinha beber um copo d’água.
        Minha noite estava sendo maravilhosa. Parecia que nada poderia dar errado. Doce ilusão. Aquela imagem assombrou meus pensamentos durante vários anos. Ao entrar na cozinha me deparei com uma poça de sangue fresco escorrendo da pia até o chão, e ao lado da poça, o corpo frio e sem vida do meu pai, já com o sangue coagulado nos cortes dos pulsos. Dentro da pia estava a faca manchada com o sangue dele. Jogadas em cima da mesa estavam algumas fotos da minha mãe transando com o filho da puta com o qual era tinha fugido quatro anos atrás. Eu fiquei paralisado. "Meu pai... Se matou?! NÃO!!". Eu sentei num canto da cozinha, horrorizado, abracei meus joelhos, escondi meu rosto e chorei.
        Não sei se era de tristeza ou raiva, mas eu chorei. Esqueci-me completamente de Clara. Eu gritei o mais alto que pude para tentar, inutilmente, diminuir a agonia. Num ato de desespero, eu chorei... Pela última vez...
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Continua...
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Leia a Primeira parte também.
Bons Sonhos...

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