Onde os sonhos são imperfeitos e sonhamos com a imperfeição...

11 de março de 2010

O início da Sombra - Parte 1

        É. Eu não sei se deveria estar escrevendo isso, mas se eu soubesse o que eu deveria estar fazendo, provavelmente não ficaria contando historinhas.
        Meu nome não importa agora, mas vamos me chamar de Schatten. Eu tinha apenas vinte e dois aninhos quando parei de comemorar qualquer coisa, inclusive meus aniversários. Claro que tenho meus prazeres, mas não é nada que mereça uma comemoração maior que uma cerveja no fim da noite num canto de um bar imundo e cheio de bêbados que não fazem nada melhor que deixar o ambiente com um cheiro podremente fétido.




        Vou tentar fazer um pequeno resumo da minha medíocre vida.
        Fui uma criança “normal”, segundo os padrões da sociedade: brincava na rua com meus amigos, jogava bola, subia em árvore, ou seja, eu tive uma infância que alguns gostariam de ter. Minha família não era rica, mas também não era pobre. Eu ia para a escola de manhã e quase todos os dias passava a tarde na casa da minha avó. Resumindo, eu tive uma infância tediosa, sem graça, mas eu era feliz. Tudo isso acabou quando eu saí da pré-adolescência.
        Chegando à adolescência eu tive uma das piores experiências da minha vida: minha mãe sumiu de casa quando eu tinha treze anos e nunca mais apareceu, pelo menos não pelos nove anos seguintes. Por esse simples fato somado às bebedeiras sem controle que meu pai começara a praticar, eu acabei desenvolvendo um pouco de raiva e frieza, e agora me responda: Você ficaria perto de uma pessoa que nem os maiores valentões da escola ousavam mexer, só de olhar o rosto que expressava claramente um “É você mesmo que ta me olhando, vai confiar na sorte mesmo? Tem certeza?”? Pois é, todos os amigos que eu tinha também se afastaram de mim. Não que eu me importasse com isso, eu só queria viver a minha vida sem enchimento de saco, e mesmo eu somente querendo ficar quieto num canto, duas pessoas, somente duas pessoas ousaram chegar perto de mim, e foram essas duas as minhas melhores amigas.
        Uma delas era Julio, um cara gente boa pra caramba que sempre me ajudava quando eu precisava de ajuda. Ele era meio misterioso, eu nunca soube de onde ele vinha, o que ele fazia, onde ele morava, e coisas do gênero. Quero dizer, eu até soube um dia, mas num momento que não tinha importância alguma.
        A outra era Clara, e para explicar melhor quem ela era, lá vai uma historinha.
        Certa vez, depois do fim da aula, eu estava voltando para casa junto com a Clara. Ela morava duas ruas pra cima da minha, e eu sempre a acompanhava até sua casa, depois ia para a minha. Ela sempre dizia “Você é bobo, eu já disse que não precisa vir até aqui pra depois voltar duas ruas”, e eu sempre retrucava dizendo “Para conversar com você por mais cinco míseros minutos, eu voltaria quantas ruas precisasse, também já disse isso”. Viu como eu era patético? Depois disso, ela sorria, eu sorria, todo mundo sorria feliz da vida, ela entrava em casa e eu ia pra minha. Simples não? Simplesmente ridículo. Incrível o que alguém consegue fazer com a nossa cabeça quando a gente não sabe controlar os sentimentos.
        Enfim, depois de deixar Clara em casa, eu voltava as duas ruas indo em direção à minha me esforçando pra entender por que diabos a imagem daquela garota de um metro e sessenta, olhos azuis e cabelos lisos bem pretos até os ombros não saía da minha cabeça. Minhas tardes eram tediosas e todo o tempo ocioso era ocupado por formulações de teorias absurdas tentando explicar por que eu não conseguia tirar a imagem da Clara da minha cabecinha de adolescente imaturo. Como eu era ridículo.
        O tempo foi passando, os amigos continuavam os mesmo, ou seja, Clara e Julio, com a mesma rotina de sempre e eu já desistira de tentar entender o que se passava na minha cabeça.
        Teve um dia que a rotina foi quebrada por um convite. Era sexta-feira e não tínhamos nada pra fazer, então Julio chamou Clara e eu para ir até uma praça perto da nossa escola para conversar um pouco e colocar a conversa em dia. Julio mudara de cidade no ano anterior por um motivo obviamente desconhecido, e tinha voltado para rever os avós e passaria o fim de semana com eles. Como eu não via meu amigo fazia um ano, aceitei o convite sem pensar muito. Clara disse que iria, mas um pouco mais tarde porque iria à casa de uma amiga antes. Na hora combinada, fui para a tal praça, sentei num banco e fiquei esperando os outros aparecerem. Não sei quanto tempo demorei perdido nos meus pensamentos sobre a minha vida antes de ser interrompido.
        Peguei-me pensando em por que será que tudo aquilo acontecia comigo. Quero dizer, eu era feliz na minha infância. Eu era uma criança comum, mas depois que a minha mãe sumiu, eu me tornei uma pessoa fria, e todos os “amigos” que eu tinha se afastaram de mim e nunca ninguém tinha sequer tentado se aproximar de novamente, até Julio começar a falar comigo num dia qualquer, e eu nem me lembro como, e mais tarde a Clara, que sempre me defendia quando as amigas dela falavam que ela era louca de vir conversar comigo. Não, eu não estava reclamando e também não me importava com a falta de amigos, mas aquilo me incomodava. Eu só queria entender porque os dois se interessaram por mim. Apesar de toda a minha amizade com os dois, sempre passava pela minha cabeça a possibilidade de eles terem vindo falar comigo por pena. Até por que quem não teria, além de medo, pena do “garotinho que era órfão de mãe que ficava longe de todos e era rude com qualquer um que tentasse falar com ele”? Claro que eu fui rude com os dois, mas por algum motivo eles insistiram e eu acho que foi porque eu fiquei tão intrigado com a insistência que eu acabei amigo deles.
        Eu não gostava de pensar na hipótese de que eles eram caridosos e tinham pena de mim. Tenha pena dos outros, mas não de mim, eu não precisava e nunca precisei que sentissem pena do que eu era, mas mesmo não gostando de pensar nessa hipótese, eu pensava. Com o tempo eu aprendi a confiar somente em mim e em mais ninguém.
        Passado um tempo envolvido nas minhas teorias absurdas, parei de pensar nos dois e comecei a lembrar da minha mãe. Eu nunca pensei que ela seria capaz de abandonar um marido e um filho de súbito, sem nenhum motivo aparente. Ela acabou com a vida do meu pai e com a minha também, e eu nunca superei o trauma de não ter a presença da minha mãe durante nove anos. Meu pai, aquele que eu via como herói, vivia bêbado e dificilmente me dava atenção, e era melhor assim porque desse jeito eu tinha um problema a menos para me preocupar.
        Não, mais uma vez você está enganado. Eu me preocupava com meu pai sim, mas se eu tinha treze anos e estava conseguindo viver, por que ele com quarenta e um não conseguiria?
        Vadia. Isso que a minha mãe era, uma vadia. Que mãe abandonaria o lar do nada? Em um dia qualquer ela disse que iria ter que viajar no dia seguinte por causa do trabalho, mas voltava em uma semana. Passaram-se três dias e descobrimos que ela tinha um caso com um político corrupto e que fugira com ele para uma ilha esquecida na divisa da América Central com a América do Norte. O importante é que...
        – Ô rapaz! Acorda! – Disse Julio empurrando meu ombro e interrompendo a minha linha de pensamento. – Ah vai, eu não mudei tanto assim.
        – Que isso cara, não mudou mesmo. Não cresceu nem um centímetro. – Brinquei.
        Julio sempre fora uma pessoa pequena. Uma vez ele me contou que era o maior da turma quando estava na quarta série, com um metro e cinqüenta em sete, só que desde aquela época ele crescera somente três centímetros. E eu sempre brincava com a altura dele, apesar dos meus não muito maiores um metro e setenta e um. Ele andava sempre com os cabelos bagunçados, usando um boné com um símbolo na frente que eu nunca fiquei sabendo de onde era. Nunca se importava como iria se vestir, a não ser quando Ana fosse estar no mesmo lugar que ele. Eu nunca tive muita afinidade com a Ana, apesar de responder um “bom dia” quando os dias que eu estava de bom humor fossem os mesmos dias que ela me cumprimentava quando eu estava perto do Julio. Ele não era muito popular e as garotas não viviam dizendo que ele era bonito, e sinceramente eu acho que ele não se importava com isso. Apesar disso tudo ele era do tipo de pessoa que se dava bem com todo mundo, mesmo ninguém sabendo nada sobre ele. Embora fosse um mistério ambulante, não havia uma pessoa que não dissesse pelo menos um “oi” quando o via.
        Ficamos conversando por um tempo, acho que foram por uma meia hora mais ou menos, contando as novidades, até que ele cutucasse meu ombro e apontasse pra o outro lado da rua da praça. E adivinha quem estava lá olhando pros lados esperando para atravessar? Ela mesma, a Clara. E mais uma vez eu não fazia idéia do motivo do meu coração ter acelerado ao ver aqueles olhos pintados com o azul mais lindo do mundo, Comecei a sentir algo que eu nunca havia sentido antes, era bom, mas ao mesmo tempo me dava uma sensação de medo. Se eu soubesse como eu estava sendo estúpido, eu teria caído fora de lá o quanto antes...
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