Onde os sonhos são imperfeitos e sonhamos com a imperfeição...

1 de março de 2011

Lembranças de um Futuro (Pouco) Distante #2 - Dragões são, de fato, moinhos de vento

            Durante o caminho para casa, o clima estava tão melancólico quanto o de um velório, se não mais. A sensação era de que todos estavam mortos por dentro. Não pareciam tristes, e sim mortos. Eram como robôs que não sentiam, apenas seguiam uma ordem direta. Todos caminhavam mecanicamente para seus destinos. Uns estavam indo para suas casas descansar, outros indo ao encontro de um outro alguém, outros poucos iam desanimados em direção ao trabalho...
            Não importa quem nem para onde iam, estavam mortos... Não, não eram mortos literalmente, óbvio. Seus corações estavam mortos, e não suas vidas. Não eram ninguém. Não sentiam, não amavam nem odiavam. E essa ausência de sentimento desencadeava mais mortes, porquê, como dizem, você não é ninguém até que seja amado (ou odiado).
            Como a chuva que abre o outono e anuncia o fim do verão, as pessoas ainda traziam vestígios do passado. Elas traziam consigo a esperança. Esperança essa, tão essencial que, sem ela, talvez não estivessem nem andando, tampouco respirando. Mas para alguns (a maioria), essa esperança era sinônimo de dor, e não de força. Para esses, a esperança era como um veneno: matava-os aos poucos, todos os dias, a todo instante, a cada segundo. A cada passo suas pernas fraquejavam, alguns caiam e ficavam no chão agonizando e orando para que suas vidas fossem ceifadas de uma vez. Isso, claro, inconscientemente. Eles não sabiam. Se sabiam, fingiam. Porém seus olhos gritavam a verdade.
            Alguns quilômetros se passaram e resolvi parar. Desliguei o motor e avistei um rapaz andando, inquieto, de um lado para o outro. Com as mãos na cabeça, ele abafava alguns gritos de desespero. Gritos que, mesmo dentro da mente do rapaz, qualquer um que passava pela rua podia ouvi-lo.
            “Não! Não!” dizia um lado da mente do pobre garoto.
            “Aceite a verdade...” dizia um outro lado.
            Estava começando a ficar claro o que estava acontecendo. Pelo menos eu achava que sim.
            “Não é verdade! Não pode ser!”.
            “Você sabe que é...” calmamente seu outro lado argumentava.
            Estava começando a ficar claro como um cristal...
            “Não era isso que deveria acontecer!”.
            “Mas aconteceu, aceite antes que isso te mate. E não, não é invenção sua nem de ninguém”.
            Ele estava tão confuso quanto uma chuva fria que cai solitária durante o inverno.
            “Eu não inventei NADA!”.
            “Exato. Como eu disse, não é invenção sua. Você apenas pegou as peças e montou o quebra-cabeça”.
            Ele estava morrendo, como os outros que eu vi durante o dia.
            “É impossível! Você que ligou os fatos! Você que está me induzindo a concluir essas besteiras!”.
            “Eu não estou induzindo você a nada. Até onde eu sei, eu sou você e você sou eu. Você concluiu tudo sozinho. Sozinho como sempre esteve, e como sempre estará. Aceite.”.
            Sozinho como sempre esteve... Essas palavras ecoaram na minha cabeça...
            “Eu nunca estive sozinho! Minha família, meus amigos, eles sempre...”
            “Realmente?” ele se interrompeu. “Você realmente acha que eles estavam com você? Pelo amor de Deus, aceite a realidade.”
            Seu comportamento no meio da rua dizia que ele estava começando a aceitar essa tal realidade. Depois de uma pausa, sua discussão consigo mesmo continuou.
            “Não... não pode ser...”.
            “Mas é. Simples. Pensar que você não está sozinho é perda de tempo. Isso aqui não é um filme onde sempre terá alguém para te fazer companhia quando você precisar.”.
            Nesse momento, o rapaz já sentara na calçada. Nervoso, ele sacou um cigarro e hesitou em acendê-lo.
            “Ah, dane-se. Ninguém vai ver mesmo...”.
            “Isso. Aceite. Se o cigarro vai ajudar, então fume. Lembra dos seus familiares por que você sempre zelou? Eles não estão nem aí para o que você faz ou deixa de fazer. Se esse cigarro te matar, ele fará um favor pra sua família. Seus amigos? É melhor chamá-los de oportunistas. Eles sobem em você quando podem, sugam toda a sua força, se aproveitam de todo carinho que você tem por eles, e quando você precisa, onde eles estão? Assistindo TV, ocupados demais para te ajudar. Não preciso nem falar dos seus companheiros do trabalho né?”
            Ele morria a cada tragada...
            “Não, não precisa...”.
            “E claro, sabe a Carla? Ela só está te usando para provocar ciúmes no último ex-namorado. Ela te da bola, mas quando você chamá-la para sair, você ouvirá um belo ‘não’”.
            Estava feito. Seu coração acabara de morrer junto com seu lado que ainda via a esperança como força, e não dor.
            Eu não queria ficar mais ali. Aquele rapaz tinha acabado de se unir aos muitos que rastejavam pelas ruas, e com certeza ele foi apenas o começo de uma epidemia. E eu não queria estar lá quando a epidemia explodisse. Liguei o motor do carro e saí de lá o mais rápido que pude.
            Acelerei. Quanto mais eu acelerava, mais devagar a rua parecia ficar para trás. A cada metro, pessoas como aquele jovem rapaz tombavam e pereciam nas calçadas. Os poucos que suportavam a dor, de fato, não estavam sozinhos, mas logo estariam.
            ─ Ei. ─ uma voz ecoou na minha cabeça.
            “Não... deve ser loucura minha...” eu pensei e continuei acelerando. Aquele rapaz ainda estava cravado na minha memória. Sua discussão consigo mesmo, seu desespero, será que aquilo acontecia com todos que sucumbiam em meio às luzes da cidade?
            ─ Você pode apostar que sim. ─ a mesma voz ecoou novamente na minha cabeça.
            Meu coração acelerou junto com o motor do carro, com uma mistura de medo e confusão. Será que aquilo estava acontecendo comigo? “Não é verdade! Não pode ser!”.
            ─ Você sabe que é... ─ A mesma voz ecoou pela terceira vez.
            Disparado, meu coração voou até a minha garganta. Estava se repetindo comigo. Não, eu não queria acabar morto como aquele rapaz. Liguei o rádio, aumentei o volume e comecei a acelerar mais ainda.
            ─ Não adianta tentar fugir...
            Eu acelerava e fingia que não era comigo. A voz ainda estava lá. Estava dentro da minha mente.
            ─ Você realmente acha que vai se livrar de mim?
            Não, eu não ia. Eu sabia disso. Eu iria perder a guerra, eu iria perecer naquele carro. Parte de mim estava prestes a morrer.
            De repente silêncio. O silêncio tomou conta do mundo. Eu já não mais ouvia o rádio, o motor, as pessoas, nem mesmo minha própria voz. Tudo pareceu cessar, ou pelo menos quase tudo. Eu ainda podia ouvir as fracas batidas do meu coração. Eu ainda ouvia as primeiras gotas de chuva que tocavam o chão e se espalhavam pelo asfalto. Minha respiração harmonizava com a dissonância do silêncio e, por um breve momento, pude ouvir meu coração soltar um grito abafado causado pela dor que invadiu meu peito.
            Não sei explicar como era a dor. Mesmo que eu tente, talvez eu não consiga nem mesmo definir sua origem. Seria uma ferida do passado não cicatrizada que veio à tona? Seria um simples desabafo que nunca aconteceu? Seria uma simples saudade de um simples abraço? Não sei dizer. E nunca saberei, eu espero. Talvez seja a mistura de tudo, ou talvez fosse somente a certeza de saber que eu estava morrendo.
            ─ Não adianta fugir... ─ eu sussurrei para mim mesmo. ─ Ok! Diga! O que você quer?! ─ eu gritei. Prolongar o inevitável só traria mais dor.
            Silêncio mais uma vez. A outra voz não respondeu.
            ─ Agora você que está fugindo! Vamos! Apareça!
            As pessoas que caminhavam na rua pareciam não se importar comigo, um louco qualquer gritando a falando sozinho. Elas sabiam como eu estava, sabiam muito bem o que estava acontecendo comigo, afinal, elas já haviam passado pelo mesmo.
            Nada. Nem uma palavra como resposta. E assim seguiu por mais alguns semáforos e uns tantos outros quilômetros. Quando me acalmei, ela apareceu.
            ─ Eu não fugi. Sempre estive aqui. ─ finalmente respondeu a voz. Essa voz era da minha mente, como eu já disse, mas ainda assim não era a minha voz. Era rouca. Fraca. Morta.
            ─ O que você quer? ─ eu perguntei.
            ─ Preciso mesmo responder? Somos a mesma pessoa, você sabe a resposta.
            ─ Aquele rapaz... Vai acontecer o mesmo comigo?
            ─ “Conosco”, você quis dizer. Sim. Em algum momento, sim. Talvez agora, talvez amanhã, talvez daqui a décadas. É impossível dizer.
            ─ E o que é isso tudo? Qual é o resultado?
            ─ Você estava certo desde o início. Cada pessoa tem duas faces, dois lados, dois psicológicos. Você é um lado, eu sou outro. Aquele rapaz cometeu o erro cedo demais. Ele desafiou seu outro lado sem necessidade. E quando isso acontece, um os dois lados vence e toma o controle. Quase como se realmente a própria pessoa matasse parte dela.
            ─ Bem e mal? É isso?
            ─ De jeito nenhum. É o emocional e o racional. Todos tendem a agir num misto dos dois, mas em momentos de desespero, quase todos agem 100% emocionalmente. O rapaz estava passando por momentos difíceis. Sua vida estava na merda e, a cada dia que passava, ela afundava mais ainda. Sua família já quase não existia, seus amigos quase não se lembravam mais dele. Ele sabia disso, mas o carinho e amor que ele sentia faziam seu lado emocional ter esperança e continuar sobrevivendo. Mas ele começou a se questionar e deu espaço para seu lado racional tomar conta. Ele apenas ligou os fatos e aceitou que sua vida era uma merda. Uma pena, talvez ele tivesse melhorado caso não buscasse respostas na razão.
            Essas palavras me fizeram lembrar. Levaram-me de volta ao tempo em que eu acreditava que bastava apenas querer para conseguir algo. Mal sabia eu que na realidade, quando desejamos alguma coisa, fatores externos influenciam muito mais no andamento da nossa busca do que a nossa própria vontade. Elas me lembraram de sonhos não realizados por serem impossíveis, de feridas que, mesmo cicatrizadas, ainda doíam, de sentimentos, sensações e oportunidades que foram adormecidas e esquecidas por terem sido, assim como os sonhos, impossíveis.
            ─ Sim, ─ a voz continuou ─ são esses seus pensamentos que antecedem a dúvida e, consequentemente, as perguntas.
            ─ Isso significa que agora nós dois iremos discutir até um “matar” o outro? ─ indaguei.
            ─ Não. Não necessariamente. Pelo menos não acho que nós dois brigaremos.
            ─ Por quê?
            ─ Você já está aceitando a realidade. Olhe para fora. Para as pessoas que estão esperando seus ônibus. Diga-me: você acha que elas ainda estão com seus dois lados vivos e harmonizados?
            ─ Não. Está óbvio que não. Seus corações estão tão mortos quanto qualquer um outro que vi hoje.
            ─ Exato. Eles morreram hoje. Eles morreram ontem. E eles morrerão amanhã, e todos os dias serão como hoje.
            ─ Eu não entendo... ─ faltava-me compreender apenas um detalhe.
            ─ O lado racional, se morre, ele deixa de existir e nunca mais volta, diferente do lado emocional, que revive todos os dias. Sempre volta para fazer o coração de todos bater novamente.
            Pronto. Eu havia entendido. Agora tudo estava fazendo sentido. O segredo é a esperança. Depois que o emocional morre pela primeira vez, a esperança morre junto, mas não deixa de existir. Ela apenas se transforma. Ela deixa de ser força para ser dor. Deixa de ser motivação para ser uma luta por causas perdidas. E talvez seja esse o sentido de tudo. Não sei os outros, mas a partir daquele dia, eu passei a me unir àqueles que rastejam pelas ruas buscando apenas suas camas para que possam sonhar e, pelo menos por um instante, viver a desejada realidade que não existe. A partir daquele dia eu passei a morrer todos os dias para acordar em busca de, como eu disse, uma causa perdida.



Não, não revisei. Perdoe-me pelos possíveis erros.

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